A
VENERÁVEL VERÔNICA LAPARELLI, MULHER AUTÊNTICA E AUTÊNTICA CISTERCIENSE
O tema que me foi atribuído é fascinante, mas
também muito simples. Trata-se de esboçar o perfil extraordinariamente feminino
e o caráter plenamente cisterciense da Venerável Verônica Laparelli, neste dia
da MULHER e nesta comemoração anual da morte desta vossa grande e santa conterrânea.
O farei muito
simplesmente, como mulher e monja cisterciense, portanto baseando-me em uma
experiência de vida, deixado aos especialistas a tarefa de enquadrar os
acontecimentos do Mosteiro da Santíssima Trindade e a figura da Venerável
Verônica, no contexto da história cortonese.
Como mulher e monja
cisterciense posso vos dizer com toda sinceridade que Verônica sempre me
fascinou. Constatei também que este fascínio é amplamente percebido por muitos
monges e monjas cistercienses que conhecem e amam Verônica. Fazendo os cursos
de história e espiritualidade cisterciense em alguns mosteiros da América
Latina e da Ásia, para ilustrar o movimento de reforma iniciado no século XVI,
sempre apresentei como modelo a figura da Venerável, dando-me conta que já era
uma irmã que conheciam, apreciavam e invocavam. Aqueles que ouviam falar dela
pela primeira vez, ficavam logo conquistados e me falavam da atração que tinha
exercitado sobre eles esta monja tão profundamente humana, de caráter tão
quente e solar, e do espírito tão espontaneamente cisterciense.
Em um artigo que
escrevi há muitos anos, afirmava que o carisma cisterciense, apesar de ir
assumindo acentos e tons diversos conforme os tempos e lugares, se podia
reconhecer facilmente em uma comunidade e em uma pessoa que o vivem
integralmente, por causa de sua particular tonalidade evangélica, ao mesmo
tempo terna e robusta. Assim, Verônica é uma destas pessoas em que o carisma de
Citeaux resplandece de modo magnífico.
Os elementos
fundamentais da espiritualidade cisterciense não são difíceis de discernir e os
encontraremos gradualmente no curso das exemplificações que proporei, tomadas
da vida de Verônica.
A espiritualidade
cisterciense se pode resumir assim: Na escola do serviço divino, que é o
mosteiro, sob a guia do Evangelho, seguindo a Regra de São Bento, que é
defendida tenazmente nas suas observações, mas é sempre próxima a toda a Bíblia
e em particular o Cântico dos Cânticos, o discípulo aprende:
1 – A conhecer o homem,
a si mesmo e ao próximo, isto é, o homem concreto, mas capaz de novamente
dirigir-se a Deus. A espiritualidade cisterciense é, neste sentido,
fundamentalmente otimista; o homem perdeu sua semelhança, mas pela natureza que
lhe é própria, ele é e permanece imagem de Deus e é chamado a restabelecer a semelhança
com aquela Imagem perfeita que é o Verbo Encarnado. A perda da semelhança vem
reconhecida, sobretudo na desvio das faculdades do amor, que deve voltar-se
novamente ao Bem supremo. O amor deve ser reordenado, isto é, colocado em ordem:
Deus no primeiro posto e depois nós mesmos e o próximo. Devemos aprender de
novo a nos tornar filhos de Deus e irmãos entre nós, amando retamente também
nós mesmos.
2- O caminho da região
da dessemelhança àquela da semelhança acontece através da ascese, a fatiga da
subida, dado que estamos mergulhados no abismo do amor desordenado a nós
mesmos. Com a renúncia e o desapego, o homem aprende a deixar o mundo (exterior
e interior) para "habitare secum",
arrepender-se e converter-se. Deverá abrir-se a Deus para receber como dom,
para desenvolver as virtudes teologais e monásticas, para tornar-se conforme a
Jesus, seu único Senhor, Via, Verdade e Vida.
3 – O retorno a Deus,
que se realiza no quadro da história da salvação, se realiza essencialmente
mediante o mistério da Encarnação, que não pode senão que ocupar o posto
central.
- A humanidade de
Cristo é venerada como sacramento da presença de Deus.
- Cristo é o único
mediador entre Deus e o homem (e Maria participa desta mesma meditação, porque
estritamente ligada ao mistério de seu Filho).
-Cristo é o modelo (o
exemplum): ele somente pode restaurar a semelhança original, mas este implica,
da parte do homem, uma imitação das suas virtudes.
4- A experiência de
Deus ocorre aqui, sobre a terra, no claustro, e é ligada a caridade, ao amor
ordenado: os escritores cistercienses do século XII e XIII o descrevem como
visão, união espiritual, paz e repouso em Deus, sábado, júbilo e contemplação.
O realismo cisterciense sugere que o âmbito em que se constrói e se começa a
experimentar, em todas as dimensões, a eternidade beata é a vida presente. O
paraíso verdadeiro (não aquela artificial e fictício proposto pelo relativismo
moderno e pela publicidade), o paraíso da alma amante, ou se inicia a
conhecê-lo, a amá-lo e experimentá-lo aqui na terra, ou não se o conhecerá
jamais. Recordamos a célebre síntese de São Bernardo no sermão 96, De diversis:
“Pro paradiso quem perdidimus, restitutus
est nobis Christus Salvator”, “No lugar do paraíso que perdemos, foi
restituído Cristo Salvador”.
Portanto:
- Em uma participação
ativa da liturgia.
- Na Lectio divina,
concebida como diálogo de amor com Deus.
- Na comunhão fraterna
da comunidade – Igreja, Corpo de Cristo.
- No duro trabalho que
permite manter-se e socorrer os pobres, percorrendo a via da obediência e da
humildade, a monja encontra a semelhança perdida que tem uma única face: aquela
de Cristo.
Como se pode notar, o
programa de vida cisterciense é simplíssimo e global: abraça toda a história da salvação – a criação
e a redenção -, a vida presente e a futura, a alma e o corpo, a dimensão
pessoal e comunitária, a mente e o corpo, o todo unificado na Pessoa divina do
Homem Cristo Jesus.
Vejamos agora como este
simples e exigentíssimo programa de vida foi vivido – com traços
extraordinariamente femininos – por nossa Verônica.
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Todos conhecem o
episódio da menina de 5 anos que se afeiçoa a um pintinho, que depois morre e
que ela o reencontra corrompido e cheio de vermes. Paramos um pouco, porque
isto, que poderia parecer uma anedota infantil sem importância, explica e
sintetiza toda a vida de nossa Venerável. Verônica menina se encontra de modo
inesperado e violento fazendo a experiência da caducidade da vida. É uma experiência
basilar e salutar, que todos os seres humanos fazem, mais cedo ou mais tarde,
ainda se não – como Verônica – a uma idade tão tenra. Esta experiência, sempre
dramática, tem diversos fins, segundo como se a afronta, pode conduzir ao
abandono confiante ou a desesperação, a indiferença cínica ou ao hedonismo (“
comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”) ou a resignação estóica.
Contemporaneamente a
constatação, em todo caso amarga, da presença amarga da morte no mundo, há –
para Verônica como para todos – uma outra experiência fundamental: a descoberta
do desejo. Aquilo que amo ( a mim mesmo ou a um outro) não pode morrer, não
quero que morra, deve durar sempre, porque se morre destrói a felicidade a que
aspiro. Este desejo irreprimível e aparentemente ilógico é descrito por S.
Agostinho como inquietude: “ Fecisti nos
ad Te, Domine, et inquietum est cor nostrum…”. Há em nós uma aspiração a amar e a ser
felizes que transcende nossa limitação e nossa caducidade; desejamos algo que a
nossa natureza mortal não está em grau de satisfazer. Também de frente a este
desejo de absoluto e de eterno, as reações podem ser diversas: pode ser o
crédito que se dá a revelação, enquanto razoável, isto é, que não contradiz a
razão, mas a ilumina o que lhe supera, ou a “fé” em uma ideologia, como o
marxismo, o nazismo, o humanismo positivista, a ciência, a técnica, etc. A sede
de um sentido global, a sede da verdade ( qualquer ela seja ou onde quer que se
encontre) é de tal modo radicada no coração do homem que prescindir dela
comprometeria a existência. A busca da verdade é uma exigência inerente a cada
pessoa que queria chegar a dar uma resposta as perguntas fundamentas que tocam
o sentido da vida. O relativismo moderno, que nega a existência da verdade
absoluta e, portanto uma lei moral universal, é também esse uma “fé” baseada
sobre uma visão pessimista do homem e da história. Pode acontecer, porém – e é um fenômeno
doloroso e preocupante de nossa época- também a remoção deste desejo de absoluto e de sentido ou sua diminuição resignada. Hoje, sobretudo
muitos jovens, confusos e desiludidos, se satisfazem
com aquele pouquíssimo gozo passageiro oferecido pelo sexo, pelo sucesso ou
pior, pela droga, o álcool e as transgressões de toda espécie. Não se colocam
mais ou evitam colocar perguntas, as quais sabem por experiência que serão
dadas respostas contraditórias ou mentirosas. Sentem, portanto que é inútil
perguntar-se o porquê, mas satisfazem os seus desejos curtos ou o removem totalmente,
sem darem uma razão, para poder gozar sem entusiasme daquele pouco prazer que
pode oferecer uma existência humana, cujo escopo permanece obscuro ou
insensato. A experiência, porém ensina que é pelo menos arriscado confundir o
prazer ou a emoção com a “alegria” verdadeira e que o nosso coração não chega a
se satisfazer de tão pouco... Prova disto é a geral insatisfação que reina nas
nossas sociedades saciadas e desesperadas, ou pelo menos riquíssimas de
estímulos, mas privadas de verdadeiro significado.
Aos cinco anos, também
Verônica se torna consciente que, como todos, é feita para amar e para ser
feliz; para amar sempre e ser amada sempre e que nisto consiste a sua alegria. Dá-se
conta, porém que o ser amado pode morrer, e de fato, morre. Esta pequena
filósofa de cinco anos não se satisfaz, não arrasta o problema, não encurta ou
remove o seu desejo, não resigna: quer um amor infinito e eterno, compreende
que somente aquele amor pode saciar seu coração. Então se torna teóloga: “As
coisas da terra acabam, portanto eu não posso amá-las com toda mim mesma; Deus
é o único bem que não morre e portanto amarei a Ele e todo o resto n´Ele”. “Fecisti nos ad Te, Domine, et inquietum est
cor nostrum donec requiescat in Te”.
O antigo biógrafo diz
que Verônica manteve esta resolução infantil até a morte. Quando, antes de
morrer, foi lhe concedido lucrar o jubileu, durante a Missa, no momento da
elevação da Hóstia e do Cálice, foi ouvida repetir em voz baixa por três vezes:
“Senhor, se é para a salvação da minha
alma, e se vos agrada, atrai-me a vós”.
Toda sua longa existência foi expressão daquele desejo que encontrará
plena satisfação e repouso definitivo somente em Deus, em um abandonado
confiante a Sua sabedoria e a Sua vontade.
Mas sigamos em frente:
a pequena Verônica, portanto tinha individuado o seu objetivo (Deus) e a
direção (a vida eterna), mas precisava percorrer a estrada para chegar até a
meta, precisava fazer a saída, fatigar na ascese. As biografias dizem que a menina, e depois
adolescente, se dá com ardor a oração, a penitência, ao jejum, as disciplinas e
purifica a sua alma dos seus defeitos com a confissão freqüente. Uma vez
reconhecida a imagem divina a que dar todo seu amor, ela deve recuperar a
semelhança, aprendendo a conhecer a si mesmo e aquilo que nela deve ser
modificado. Os de sua casa, avisados pelos empregados, buscam distraí-la deste
tipo de vida não adaptado a sua condição e sua juventude, com o único resultado
que Verônica se torna mais sagaz e prudente, evitando que os outros percebam as
manifestações de seu amor secreto.
A menininha cresce e
não muda seu propósito, ao invés disto se orienta para a vida monástica,
escolhendo o mosteiro cisterciense da Santíssima Trindade, de recente fundação
e muito fervoroso. Quando se decide a falar com os pais da sua vocação, as
reações dos nobres Lapparelli, que igualmente esperavam esta revelação, é óbvia: ‘Não é possível, não é conveniente,
é um capricho (colpo di testa) de quem tem tudo, não temos dado nenhum
desgosto...”. Verônica sempre se demonstrou uma filha obediente, dócil,
respeitosa. Compreende que convém esperar e confiar em Deus, que obra mudanças
impensadas nos corações dos homens. De resto, ama demais seus pais para
rebelar-se a eles abertamente, também porque uma fuga ou uma resistência direta
não lhe convinha: o mosteiro escolhido é na mesma Cortona, onde a família
reside e é muito conhecida; é preciso evitar rupturas e escândalos; os pais,
que são cristãos piedosos, tem somente necessidade de tempo e acabaram por
ceder... Verônica é dotada de um sólido bom senso e de um equilíbrio que se
manifestaram durante toda a sua vida, e embora multiplicando as súplicas e as
penitências para alcançar seu objetivo, espera... O tempo lhe dá plenamente
razão: “Vendo os pais de Verônica que a
filha já tinha chegado a uma idade para escolher seu estado (de vida), nem se
poderia esperar que às núpcias terrenas jamais daria seu consentimento; por
outro lado a sua firmeza em seu primeiro propósito, e o santo teor de vida sem
eventos de relaxamento ou diminuição de fervor mostrando bem claro, não era da
veleidade juvenil a mover seus pedidos, mas da soberana virtude, estimaram não
deverem nem poderem mais longamente, pelas leis da piedade e religião, opor-se
aos seus desígnios. Por isso, e para não ter mais no coração que ver em tanta
aflição a filha, consentiram finalmente, com suma repugnância de seu animo, o
suspirado consenso” (F. Salvatori, Vita, II ed., Roma 1779, p. 13).
Também ao casal
Lapparelli não faltavam ao discernimento e um sólido realismo. Certamente se
disseram: ‘ Esta filha já tem 23 anos. A conhecemos: jamais consentirá a se
esposar e de resto não queremos forçá-la. Sabemos que a sua piedade e a sua
virtude são sólidas, porque o demonstrou amplamente. É verdade que para nós
será doloroso separar-nos dela, mas queremos verdadeiramente que permaneça em
casa como solteirona, obedecendo, sofrendo e calando? Digamos que sim e que se
vá com a nossa benção!’
Verônica entra no
mosteiro em 11 de novembro de 1560. A deliciosa descrição do ingresso, feito
pela Abadessa Crotonesi, pinta para nós o seu caráter: não é uma beata (santarellina) composta e
contrita, mas uma mulher apaixonada e de caráter daquela que abandona o mundo.
É sensata, se preparou com uma dura vida ascética, soube esperar, mas agora que
alcançou o Amado, pode dar liberdade aquilo que sente: vestida de branco como
uma esposa, adornada de jóias, circundada pelos parentes e amigos, conduzido a
casa d´Aquele que ama, não lhe importa fazer rir a todos com o seu ardor. Fora
as jóias, fora as vestes, fora tudo... ”Enquanto
elas dizia estas palavras de renunciar a vaidade, arrancava as pérola, tirava
os colares, os enfeites no pescoço, que tinha vestido, e melhor dizendo os
arrancava de maneira que todos os presentes foram levados a rir, não sabendo a
causa de tal novidade. As monjas também não se podiam conter de rir...”
(Margherita Cortonesi - Vita manoscritta). Só quem conhece o poder de um grande
amor pode se dar plenamente conta da profundidade daquele verbo utilizado pela
abadessa escritora: “arrancava”.
Verônica arrancava os ornamentos que a tornavam bela para poder se
revestir da beleza de seu Amado.
Permiti-me um
parêntesis, antes de continuar com os exemplos tirados da vida de Verônica.
Havendo ouvido alguma coisa dela pela leitura em público dos nossos Menológios
monásticos, eu a conheci verdadeiramente quando, em 1987, um monge da abadia de
Gethsemani, nos Estados unidos, o Padre Crisogono Wadell, co-irmão do célebre
Thomas Merton e grande experto de hagiografia cisterciense, nos falou dela
longamente em uma sessão ocorrida no meu mosteiro. Recordo como se fossa agora
as palavras com que ela foi apresentada: “Quero vos falar de uma mulher
verdadeiramente incrível, uma pessoa muito vivaz, uma mulher... segundo o meu
coração: uma monja cisterciense de Cortona...”. Verônica é, sob todos os aspectos, uma pessoas
que fascina... Obediente e livre, paupérrima e grande senhora, com os pés bem
plantados na terra e a mente e o coração no céu, dotada de um solidíssimo bom
senso e louca com as loucuras de amor. Já vimos que, na sua família natural,
fui uma filha amorosa, submissa e respeitosa.
Veremos, embora de modo
sucinto, que também no mosteiro realizou totalmente a sua vocação feminina de
irmã, esposa e mãe.
A regra de São Bento
proscreve severamente o vício da propriedade e afirma que o monge não é mais
patrão nem mesmo do próprio corpo, mas no século XVI, por diversas causas
também legítimas que não estaremos analisando, no ambiente monástico da Itália,
Espanha e França se observam costumes e tradições já inveteradas que
contradiziam o texto e o espírito da Regra. Também as monjas de Cortona, muito
pobres, buscavam prover individualmente às suas necessidades com pequenos
trabalhos, dependiam ainda muito das respectivas famílias para a alimentação,
as roupas e outras necessidades. Cada uma tomava o alimento na sua cela
particular e comiam em comum somente nos dias de festa.
Demos a palavra a sua
Abadessa, que foi sua primeira biógrafa: “Depois
de sua vestição por nós, lhe foi consignado parte de sua doação (isto é dos
dons recebidos pelos parentes e amigos) para seu uso, como se costuma conceder
a todas as outras. Tal coisa também aceitou benignamente. Em pouco espaço de
tempo se arrependeu destas suas comodidades, parecendo-lhe ser demais livre. Molestava-me
dia e noite que eu devia tomar estas coisas para o mosteiro, que ela desejava
observar sua regra inteiramente, e não queria coisa nenhuma, embora não faltasse
por sua liberdade, tanto me foi molesta e tão bem soube alegar suas razões
sobre o voto, que eu fui forçada a consentir, ao colocar primeiramente quanto
ela sofreria pela pobreza do mosteiro como de verdade sofreu. Foram tantas
palavras que ela usou para conseguir seu intento... Privou-se de tudo o que
tinha, colocando-se toda em Deus sob obediência. Depois me levou um dinheiro, o
quais lhe tinham ficado, mas que não se tinha percebido, e por fim, foi o
princípio e verdadeiro fundamento de sua vida exemplar, isto é, que jamais quis
nada de próprio” .
Sabemos que venderá um
olival, herdado da mãe, para colocar o dinheiro a disposição da comunidade e
dos pobres. Trabalhará para se manter, utilizará os hábitos das co-irmãs
defuntas ou usados por outras, se contentará com todas as coisas mais
grosseiras. Receber-se-á presentes em dinheiro ou outro da sua nobre parentela,
logo o consignará para uso do mosteiro.
Portanto, além da
alegria evangélica do desprendido, encontramos a jovem monja uma outra graça
cisterciense: um seguro intuito comunitário, que a empurra a romper com as
hábitos do ambiente monástico da época em termos de pobreza.
Fidelíssima ao coro e
as observações monásticas, não faltava jamais aos atos comuns, mas se mostrava
relutante a participar as recriações e aos inocentes festividades que estavam
em uso no mosteiro durante o carnaval. Andava ao parlatório somente se obrigada
pela obediência. Como verdadeira cisterciense, reclamava para si o privilégio
de servir, era sempre disposta a servir as enfermas, ao serviço da mesa e aos
trabalhos mais humildes.
Vejamos como o biógrafo
Salvatori descreve uma outra graça cisterciense, que testemunha não só a
obediência e humildade de Verônica, mas também sua extrema retidão: “Não somente a quem verdadeiramente
sustentava no mosteiro grau de superioridade ela se mostrava obediente, mas até
as companheiras iguais e menores em grau e em idade, e as conversas, amando
ceder a todas, e todas reconhecendo por maiores. De modo que qualquer coisa lhe
pedissem ou mostrassem desejo, ela tomava como uma ordem, e a executava
imediatamente.
Então
somente vestia a serva de Deus com certo ar de superioridade com as outras,
quando a própria virtude da obediência a levava a fazê-lo; e se alguma vez ouvisse que tivessem murmurado de qualquer
superiora, ou se tivessem sido lentas em seguir as ordens. Então, Verônica as
repreendia docemente, e exagerando com eficácia do discurso sobre o quanto
desagradam a Deus faltas iguais e o grande mérito da obediência, as animava com
palavras e muito mais com o exemplo à perfeição daquela. ”
(F. M. Salvatori, II ed., pp. 28-29).
Uma outra deliciosa
descrição da nobreza de seu caráter encontramos só algumas páginas depois: “ Se alguma vez, alguma fizesse menção da
nobreza e da grandeza de sua família, ou por outro título de ação virtuosa a
louvasse, ela logo corava modestamente a face, e buscava mudar discretamente o
discurso. E quem disso não tivesse se
beneficiado, se desprezava no final e se irava santamente com quem lhe fazia
louvores inoportunos, e pregava o oposto com sumo calor contra si mesma,
pintando-se com tal sentimento de espírito e com tão vivas cores como a mais
inepta e mais defeituosa de todas, que por compaixão se calavam no final as
Irmãs, e mostravam render-se ao que ela dissesse, de modo que se tornou um dito
comum no Mosteiro, que para ofender a Irmã Verônica e vê-la irada, bastava
louvá-la. Assim como, ao contrário, que lhe falasse de um modo um tanto
impróprio ou em outra maneira tivesse mostrado pouca estima por ela, estava
segura de ser ela mesma tida por sua mais verdadeira amiga, por sua preferida;
dizendo que aquela ao menos não enganava, como as outras, mas a tratava como
merecia, e procurava iluminá-la em sua grande cegueira” (Op. cit. pp.
33-34).
Verônica é nobre no
verdadeiro sentido da palavra, porque sabe que a verdadeira e única nobreza é a
virtude; tendo-se dela desprovida, eis que se indigna, se ira com os
que a louvam, pregava contra que lhe
celebrava as virtudes, prefere que a têm por pouco importância , porque ao
menos estes não a enganam. Nada mais
simpático que esta monja tão genuína, irritada, indignada, irada se a louva,
porque estão mentindo, dado que não é
verdade que ela tenha as virtudes que lhe vêm atribuídas.
Temos visto até agora
que Verônica se insere espontaneamente no grande quatro teológico da
espiritualidade cristã, na modalidade cisterciense: criada por Deus, para viver
d´Ele, que é a Amor e Bem Infinito, se reconhece caída, distante dele,
pecadora, necessitada de ascese. Mas este retorno a Deus se realiza
essencialmente em Cristo, mediante o mistério da sua Encarnação.
Como as místicas
cistercienses do século XIII, de quem é herdeira, também Verônica é
caracterizada por um amor vivíssima pela humanidade de Cristo. Na sua, como nas
“Vitae” das monjas do Brabante belga ou de Helfta, há visões e fenômenos
sobrenaturais em que a pessoa de Jesus tem uma parte grandíssima. Com uma
diferença, embora Ida de Nivelles e Ida de Louvain tenham tido uma devoção
grandíssima pela infância do Salvador, em geral para as místicas flamengas e
alemãs não é tanto a visão de Jesus menino que as atrai, quanto o Cristo da
paixão. Conseqüentemente há nelas uma profunda tristeza, um agudo desejo de
participar dos sofrimentos do Redentor, uma confiança imensa nos méritos da
Cruz e das chagas do Crucificado. Verônica, italiana, de temperamento mais
simples e solar, ama apaixonadamente Jesus crucificado, se une a sua paixão,
jejua e sofre por Ele e com Ele, mas mais atraída pelo mistério do Natal e da
infância e encontra todas as suas delícias na Eucaristia, chegando até, durante
as suas freqüentes enfermidades, a pedir a saúde para poder comungar. Tudo isto
é confirmado pela sua Abadessa que escreve: “A vimos muitas vezes enferma de grande enfermidade, de cama e não podia
se mover se não quando era ajudada, e porque ela, seja enferma seja sã, não
queria jamais conforto nenhum. Se o médico ordenava remédios, frango ou outros
confortos próprios dos enfermos, ela logo via estes preparativos se levantava
do leito sem mal algum. O que era de grande maravilha para todos. Por isso, o confessor lhe perguntou o porquê,
e foi forçada a dizer-lhe que não tinha comido carne por causa do jejum e para
não privar-se do Santíssimo Sacramento. Logo que pedia ao doce Esposo a saúde,
logo a recebia. Confessou também como pedia as enfermidades para sentir um
pouco o sofrer da santíssima paixão”. (Vita manoscritta).
Era espirituosa, como
astúcia simples, toda toscana. Era similar a São Pio da Pietrelcina no seu amor
à cruz que era comovido e simples, não atormentado.
Eis como a Abadessa
Cortonessi descreve o seu matrimônio místico, ocorrido durante a cerimônia da
velação, isto é, da imposição do véu monástico:
“Aproximando-se à hora em que deveria vir Monsenhor, ela retornando ao
seus sentidos (porque esteve toda a noite em oração) se colocou em ordem, e se
vestiu como as outras que deviam receber tal sacramental do véu. Chegada a
igreja em procissão, ela novamente foi arrebatada em espírito, e todas as
cerimônias que se faziam, ela as via no céu, como as outras faziam e viam aqui
embaixo na terra. Chegando a sua vez de colocar o véu na cabeça, no lugar do
Monsenhor ela viu o doce esposo Jesus, o qual com sua mão lhe colocou o véu na
cabeça e lhe colocou o anel no dedo, e para que creia ser a verdade, ouvimos
ela em seu arrebatamento, quando fala com o esposo acima mencionado, e mais,
com a coroa sobre a cabeça, e como um sinal disso, ela não admitiu jamais que a
dita coroa se empreste para fora de casa, como se emprestam as outras coisas”.
A fama dos contínuos
fenômenos extraordinários de que Verônica era favorecida ( êxtase, arroubos,
levitações) tinha atravessado o limite do mosteiro, também porque tais
fenômenos tinham sido comprovados e não havia dúvida de sua autenticidade. A
gente portanto vinha ver a “irmã santa” quanto isso desagradasse a humildade de
Verônica de pode facilmente imaginar.
“Quando alguém do povo, que recorria a ela, em sua presença a chamava a
“Irmã santa”, ela fazia grande censura e dizia que não a chamassem deste modo
porque ela era uma grande pecadora; e quando vendo que se ajoelhavam, ela
gritava, dizendo: ‘Levanta-se, ajoelha-te diante a Nossa Senhora, que aqui não
há Irmãs Santas’. Era pois dito comum
entre o povo que Cortona tinha dois grandes tesouros, um no céu e outro na
terra: o primeiro era a Beata Margarida e o segundo Verônica”. ( Ib., p.
171).
À força de súplicas,
obtém de Deus que “se quisesse favorecer
com suas celestes doçuras, não o fizesse em público”, e foi ouvida. Quando
depois notou que a sua Abadessa estava escrevendo a sua vida “se indignou
santamente e fazendo várias vezes com ela lamentos, mesmo ameaçando-a, em caso
que não desistisse de algum castigo do Céu”. (Salvatori, op. cit., pp.
38-39).
A nossa Verônica era
uma mulher prática, com pés na terra, que via os problemas e buscava
resolve-los; sabia muito bem que para certas coisas Deus podia intervier, mas
que outras eram confiadas a nossa diligência e a competência dos homens. No
Mosteiro da Santíssima Trindade havia o problema de canalizar a água para as
necessidades da cozinha e para tornar viável as cantinas, que eram de terra
batida e sempre lamacenta. O trabalho de pavimentação e recuperação custavam 80
scudi e Verôncia só tinha 9 groffetti,
isto é, 3 liras. Confiando na Providência e com a permissão da Abadessa, fez
iniciar e continuar os trabalhos, não obstante os protestos de algumas co-irmãs
que o julgavam inoportuna, dado que à comunidade tinha vindo a faltar até o pão
cotidiano. O Senhor premiou a fé e a previdência de Verônica fazendo chegar os
valores para os trabalhos e alimento em abundancia para as irmãs. Também o
frasco com aqueles 4 paoli e meio (
moedas), que constituíam o único patrimônio de Verônica, se enchia sozinho,
permitindo-a pagar ao operário Orazio Rigoni
nos prazos fixados.
Verônica era dotada do
carisma de cura e daquele de profecia, mas não se atribuía o mérito, porque não
se achava boa para nada. E aqui devemos dizer alguma coisa sobre o famoso poço
de São Diego. Verônica era muito devota do santo franciscano canonizado em
1588. Quando as pessoas vinham pedir-lhe suas orações para obterem curas, ela
entregava um pouco de água, que tinha abençoado em nome de São Diego,
aconselhando recomendar-se a Nossa Senhora e a São Diego. Quando as pessoas
voltavam para agradecer-lhe pela graça obtida, dizia: “Agradecei a Nossa Senhora e São Diego que fizeram a graça, que eu não
sou boa para nada”. (o.c., p. 37).
Aquele poço de água que
curava existe ainda; um afresco do século XVII, isto é, da épica da morte de
Verônica e da introdução de sua causa de beatificação, e o testemunhos
constante das antigas do mosteiro garantem que se trata verdadeiramente do poço
a que Verônica tirava a água milagrosa. Uma atenta restauração poderia devolver
o brilho a este local e aumentar a glória desta vossa Cortona, a quem o Senhor
fez tantos dons de beleza e santidade.
Como Santa Lutgarda,
Verônica jejuava pela conversão e salvação dos pecadores: de 10 de novembro ao
Natal e da Epifania à Páscoa fazia suas “Quaresmas”
e a abadessa Cortonesi conta que “foram
muitos os dias em que não tomava senão a santa Comunhão. Isto se viu muitas
vezes. Entre outras, uma vez passando 18 dias sem comer e beber nada senão
quando comungava, o que era toda manhã” (Vita manoscritta). Pelos pecadores
e em modo particular pela sua Cortona suplicava a misericórdia de Deus com
insistentes orações. As monjas do mosteiro da Santíssima Trindade mencionam as
suas invocações, quando rezava sem pensar fosse ouvida ou vista: “Senhor, em benefício destas criaturas;
Senhor, em benefício destas criaturas... Senhor, estendei o braço de vossa
infinita piedade a estas criaturas... Misericórdia, misericórdia...” (F.
Salvatori, Vita, p. 110). A plenitude
de sua maternidade espiritual é evidente.
Como Catarina de Sena,
Verônica tinha uma tranqüila franqueza em denunciar a falsidade e pecados e em
estimular os eclesiásticos em cumprir com seu dever. Disto é testemunha, entre
outras, uma carta não datada e sem nome do destinatário, mas que sabemos ser
endereçada a um sacerdote: “.. . e ainda
quero rogar que recorde das muitas obrigações sua Senhoria tem com a Santa
Igreja, para que venha satisfazê-las com ela e com a sua consciência, em não
andar fatigando os outros para outra vida, para isso que Deus lhe conceda a sua
santa graça”.
A velhice de Verônica
foi atormentada por graves e freqüentes enfermidades. Quer dar tudo a seu
Senhor, até o último. Lemos na Vida de Salvatore que mesmo quando mal se podia
mover na cela, rogava de alguma irmã caridosa
dar-lhe o braço para levá-la ao coro ou as exercícios comuns. Sobretudo
neste período de lenta decadência, Verônica dá a prova mais evidente da sua
santidade, vivendo as enfermidades em atitude de oferta. Leva as enfermidades e
as humilhações da velhice com humor e uma alegria toda cisterciense, na
obediência e buscando dar o mínimo fastígio as suas irmãs. Aos 81 anos,
Verônica adoece gravemente e desejando ser dissolvida para estar com Cristo,
pensa em rezar para que Deus não a cure, mas a tome consigo. Antes quer se
assegurar de ter a permissão de sua Abadessa, que o nega; pede então ao Senhor
a saúde e poucos dias depois fica curada. Durante a última enfermidade, que
durou catorze meses, a sua paciência, a sua jovialidade e a sua adesão a
vontade de Deus deram admiração as outras monjas, outrora muito relutantes em
reconhecer a obra de Deus nos seus ‘excessos’ místicos.
“Eu sei que a dita irmã
Verônica suportou pacientemente todas as enfermidades, adversidades e injúrias,
e em todas as coisas foi conforme a divina vontade; e isto sei por ter
praticado e observado suas ações, e em particular por ter sido duas vezes enfermeira
a duas grandes enfermidade que ela teve e que ela suportou com grandíssima
paciência, e estava risonha sem jamais
se afligir e na boca tinha sempre Jesus noite e dia continuamente, de
fato até a sua morte, e quando as monjas lhe perguntavam como ela estava,
respondia sempre: Como Jesus quer”.
“Eu sei por certa ciência, que sendo divulgada a fama de sua
incomparável bondade e prudência, concorriam as pessoas para pedir desse o seu
bom e santo conselho, e eram pessoas de todos estados, graus, e condições, de
tal maneira que, estando muito envelhecida e enferma, para satisfazer e
obedecer a quem pode ordenar-lhe, se fazia conduzir com peso ao parlatório e
que ouvia as petições das pessoas, que pediam direção, conselho e auxílio, e
ela admiravelmente lhe conduzia na boa estrada do Senhor, em suas necessidades
e aflições”.
“Eu
sei, que Deus Nosso Senhor por intercessão daquela Serva de Deus Verônica
Laparelli, enquanto ela vivia, fez muitos milagres, e a muitos por meio dela
restitui a saúde; e isto sei por que a dita Irmã Verônica fez fazerem um quadro
de Nossa Senhora, e São Diego, que está
aqui em nossa igreja, e fez daquelas em
que se podem colocar esmolas, e todos os aqueles que recorriam a ela em suas
necessidades e enfermidades, ela os conduzia Nossa Senhora e a São Diego”.
A propósito deste quadro pintado pelo florentino Baccio Bonetti, há um episódio
graciosíssimo, que testemunha o espírito de profecia, e ao mesmo tempo, a
indulgência da velha Irmã Verônica. O pintor, com pouco dinheiro, foi até ela
para pedir-lhe uma antecipação e foi interrogado se no dia precedente tinha
trabalhado no quadro e que coisa tinha pintado. O pintor respondeu que tinha
pintado a cabeça de São Bartolomeu. “Falso
– replicou Verônica – antes passastes
todo o dia jogando, sem nem mesmo dar uma pincelada no quadro”. Apesar disso,
deu ao pintor o valor pedido, exortando-o a abandonar o jogo de azar.”
(Salvatori, pp. 144-145).
Verônica morre
placidamente, sem agonia, em 03 de março de 1620. A fama de santidade de que
gozava aumentou após a morte. A causa de beatificação se iniciou em 1629 e em
1774 foi proclamado o decreto sobre a heroicidade das virtudes. Infelizmente,
os acontecimentos históricos e ausência de pessoas competentes para levar
adiante a causa até agora lhe impediram a conclusão. É um verdadeiro pecado,
porque esta belíssima figura de mulher e de monja merece sem dúvida ser
proposta como modelo ao povo cristão e como intercessora junto a Deus.
Alcançar isto depende
também de vós, que deveis conservar e estender a memória da sua santidade,
rezai a ela em vossas necessidade, se é esta a vontade de Deus, obtende favores
que permitiram o avanço da causa e um juízo favorável por parte da Igreja.
Cortona, 8 de março de
2009
Ir. Augusta Tescari
O.C.S.O.
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